sábado, 11 de setembro de 2010

Literatura Brasileira no Cinema

Cinema brasileiro e adaptação de literatura ficcional de autores nacionais

Artigo publicado no livro Fusões: cinema, televisão, livros e jornal organizado por
Antonio de Andrade e Sandra Reimão – publicado pela Editora Metodista em 2007



Resumo:

Este trabalho traça um panorama da presença da literatura brasileira de ficção como fonte para o cinema nacional ao longo de sua história. Trata-se de um levantamento que visa abranger a totalidade dos filmes brasileiros de longa metragem que se basearam em obras literárias de escritores brasileiros, de 1896 até 2002, ou seja, até a consolidação do chamado cinema da Retomada. Tomou-se como fonte principal para este levantamento o livro de Antonio Leão Silva Neto, Dicionário de Filmes Brasileiros (São Paulo, Edição do Autor, 2002) que registra os filmes de longa metragem produzidos no Brasil entre 1908 e fevereiro de 2002.

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Dezenove de junho de 1898. Domingo. O navio Brésil retorna da Europa e adentra a baía da Guanabara, Rio de Janeiro. A bordo, Afonso Segreto pega sua câmera recém adquirida e filma a baía. Esta é, a que se sabe até o momento, a primeira filmagem em território brasileiro. Dez dias mais tarde, em 29 de junho Afonso Segreto filma o enterro de Floriano Peixoto e passa a realizar regularmente pequenos registros de imagens da cidade do Rio de Janeiro.

Esses pequenos filmes, ou “vistas animadas”, passam a ser exibidos no “Salão de Novidades” mais tarde chamado “Salão Paris no Rio”, primeira sala fixa de cinema, instalada, desde 1897, na Rua do Ouvidor 141, Rio de Janeiro. O principal proprietário d´ “Salão” era Paschoal Segreto irmão de Afonso Segreto. Antes da instalação d´ “Salão” as exibições de “fitinhas curtas” eram feitas esporadicamente em circos ou por artistas ambulantes. A primeira exibição destas “vistas animadas” se deu em 1896.

A filmagem da baia da Guanabara deu-se em uma viagem de retorno. Afonso Segreto fora a Paris comprar fitas e equipamentos para o “Salão”. Os Segretos foram, pelo menos até 1903, os “únicos produtores dos escassos filmezinhos nacionais de atualidades”.
Aos poucos começam a surgir os filmes de ficção, ou “posados”. As primeiras notícias sobre filme posado produzido no Brasil datam de 1906. Trata-se do filme Os Estranguladores, produzido em 1906, pela Photo-Cinematographia Brasileira, que reconstruía um crime real acontecido na cidade do Rio de Janeiro e que já havia sido abordado por folhetos, peças (inclusive a peça A Quadrilha da Morte, de Rafael Pinheiro e Fiqueiredo Pimentel da qual o filme retira seu argumento) e revistas teatrais e cujos acusados já haviam sido filmados pela Empresa Paschoal Segretto no documentário Rocca, Carletto e Pegatto na Casa de Detenção. Os Estranguladores, um filme de 40 minutos de duração, teve oitocentas exibições em dois meses e é considerado o primeiro sucesso de público do cinema brasileiro e, como observa Roberto Moura, já aponta para um primeiro domínio da narrativa cinematográfica nacional “o esquema emprestado da reportagem jornalística”. Apesar do sucesso de Os Estranguladores pode-se dizer que até 1908 a produção de cinema, destas “fitas curtinhas”, foi paupérima. “Durante dez anos (...) o cinema vegetou, tanto como atividade comercial de exibição de fitas importadas, quanto como fabricação artesanal local”.

A partir de 1907 a regularização da distribuição da energia elétrica no Rio de Janeiro propicia um incremento nas atividades cinematográficas: “A regularização da distribuição de energia elétrica para o Rio de Janeiro em 1907 dá novos contornos ao cinema carioca. (...) no segundo semestre do ano são instalados mais de vinte cinemas em torno da Avenida Central (...). Muitos desses donos de salas passam a produzir filmes, provocando a aparição de uma geração de técnicos estrangeiros de formação ou improvisados e também nacionais, vindos da fotografia de estúdio ou do jornal”.


A primeira adaptação cinematográfica de romance de autor nacional

O primeiro filme brasileiro que teria tido por origem um romance de um autor brasileiro foi Os Guaranis de 1908. Porém, nesse caso, não se tratava de uma adaptação literária propriamente dita, mas sim da filmagem de uma pantomima circense, esta sim, inspirada no romance de José de Alencar. Este filme era um curta metragem e teve como operador Roberto Leal. No elenco, além de atores, encontrava-se a troupe do circo Spinelli.

Em 1914, com direção, roteiro, cenário e montagem de Luiz de Barros, o produtor Ítalo Dandini realizou no Rio de Janeiro uma adaptação cinematográfica do romance de José de Alencar, A viuvinha. Ítalo Dandini também atuava como ator no filme no papel do protagonista masculino. Não temos acesso a esse que parece ter sido a primeira adaptação para cinema de romance de autor nacional. O produtor “decepcionado com o resultado artístico e o trabalho de laboratório, destrói a película antes de sua exibição”. Observe-se que José de Alencar será um dos autores que mais serviram de fonte pra produções cinematográficas nacionais – seus romances geraram 22 filmes.

A viuvinha foi a primeira adaptação cinematográfica de um romance de um autor brasileiro. Antes dele, entretanto, os cineastas locais já haviam recorrido a autores estrangeiros na busca de enredos para seus filmes: em 1909, Antonio Leal dirigiu uma versão brasileira de A cabana do Pai Tomás, baseado no livro de Harriet B. Stowe.

Este pioneirismo cronológico e protagonismo quantitativo de José de Alencar como fonte para filmes nacionais, ilustra bem a observação de Antonio Candido em A formação da Literatura Brasileira que aponta ser José de Alencar certamente a mais sólida glória de nossa literatura junto aos leitores.

Notemos ainda que quase quarenta anos mais tarde nos primórdios da televisão e da telenovela brasileira, a primeira telenovela adaptada da literatura nacional foi uma produção de Senhora realizada pela Rede Paulista em 1952, ainda no período em que as telenovelas eram transmitidas ao vivo e não diárias, ou seja, com apenas dois ou três capítulos por semana. No mesmo ano, houve ainda as adaptações para telenovela de Diva, de José de Alencar, Helena, de Machado de Assis e Casa de pensão de Aluísio de Azevedo.


Cinema Brasileiro e Adaptação de Literatura Ficcional de Autores Nacionais - Um Rápido Olhar

Em seu livro, Dicionário de Filmes Brasileiros (São Paulo, Edição do Autor, 2002) Antonio Leão Silva Neto registra os filmes de longa metragem produzidos no Brasil entre 1908 e fevereiro de 2002. O autor apresenta as fichas técnicas de 3.415 (três mil quatrocentos e quinze) filmes brasileiros produzidos nesse período.

A partir dessas 3.415 fichas foi-nos possível localizar 459 (quatrocentos e cinqüenta e três) filmes de cineastas brasileiros que tiveram por base obras literárias de escritores brasileiros. (Em caso de dúvida sobre a autoria obras e sobre a nacionalidade de autores recorremos ao Dicionário de Literatura Brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa, Rio de Janeiro, Ed. Global, 2002 e ao catálogo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro).

Considerando o ano de produção como aquele do lançamento do filme, a produção dos 459 filmes de longa metragem de cineastas nacionais baseados em obras de escritores brasileiros é, cronologicamente, assim distribuída:



A tabela acima aponta marcadamente um incremento da proporção de filmes baseados em obras literárias nacionais na década de 1970. Nunca é demais lembrar a complexidade sócio-cultural da década de 1970 – uma década em que conviveram lado a lado os índices positivos de desenvolvimento do chamado “Milagre Econômico” e a repressão e o cerceamento vigente na Ditadura Militar. Especialmente durante os chamados anos de chumbo (1969-1974), “o mais duro período da mais duradoura das ditaduras nacionais”, o Brasil vivia altas e inéditas taxas de crescimento econômico e um regime de pleno emprego – era o chamado Milagre Brasileiro e “o Milagre Brasileiro e os Anos de Chumbo foram simultâneos. Ambos reais, coexistiram negando-se”.

Se, por um lado, o Milagre Econômico propiciou a industrialização da produção cultural e da comunicação de massa no País, por outro lado, a ação estatal em relação à produção e à veiculação cultural “discordante” durante os chamados Anos de Chumbo era simplesmente o expurgo e a censura.

Em meados dos anos 70 o país viveu a “crise do milagre econômico”, e, a partir de 75, inicia-se o longo processo de Abertura política. Em 1975 foi publicado o Plano Nacional de Cultura (PNC), formulado pelo ministro Ney Braga e pelo Conselho Federal de Educação, no qual o Estado Autoritário dá-se o papel de mecenas interessado em apoiar a cultura nacional, os produtos culturais e artísticos que valorizassem os traços e as raízes brasileiras – é nesse momento que se dá a maior presença de adaptações literárias de autores brasileiros no cinema nacional.


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A rigor, existem vários graus de adaptação de uma literária para um meio audiovisual, as mais comuns são: a adaptação propriamente dita, o “basear-se em” e o “inspirar-se em” e o vago “a partir de”. Para efeito deste levantamento não levamos em conta possíveis diferenças entre essas denominações.

As principais formas literárias que serviram de base para os 459 filmes de longa metragem de cineastas nacionais realizados, entre 1908 e 2002, a partir de obras de escritores brasileiros foram:




As obras mais adaptadas são: “O Guarani” e “Iracema” as duas com 5 versões e ambas de autoria de José de Alencar. Esse também é o autor mais adaptado com 22 filmes a partir de suas obras. Porém, em termos de variedade o mais adaptado é o dramaturgo Nelson Rodrigues com 15 obras (uma dessas é assinada pelo pseudônimo de Suzana Flag), dessas 12 são diferentes. Logo em seguida está o escritor Jorge Amado com 11 adaptações, sem nenhuma repetição.


Uma breve observação

De maneira bastante geral, grosso modo, podemos dizer que boa parte da historiografia do cinema brasileiro costuma identificar após 1930, após o advento do cinema sonoro, pelo menos seis grandes movimentos na história do cinema entre nós: o ciclo da chanchada, a experiência da Vera Cruz, o cinema independente dos anos 1950 e 1960, o movimento Cinema Novo, o assim chamado Cinema Marginal, a fase Embrafilme, e, a partir de 1995 o chamado Cinema da Retomada.

Aceitando-se as premissas gerais dessas grandes divisões, podemos verificar que em cada um desses seis momentos houve adaptações literárias relevantes e muitas delas podem ser referidas como exemplos paradigmáticos do movimento em que se insere. Neste sentido, citemos o papel central de Vidas Secas (1963, Nelson Pereira dos Santos, extraído do romance de Graciliano Ramos) no Cinema Novo ou Cidade de Deus (2002 Fernando Meirelles e Kátia Lund) a partir do livro homônimo de Paulo Lins) no chamado Cinema da Retomada.


Mais uma observação - final

Uma outra observação que salta aos olhos é a imensa variedade das formas literárias que já serviram de ponto de partida para filmes brasileiros. Praticamente todas as formas literárias ficcionais estão aí representadas. Essa variedade parece-nos indicar uma profunda capacidade de articulação, de aglutinação, da produção cinematográfica brasileira.

Essa observação se torna mais pertinente se atentarmos que o cinema brasileiro parece dialogar não só com as mais diversas formas literárias como também com outros segmentos da produção cultural brasileira. Percorrendo a listagem dos filmes brasileiros é possível verificar que existem produções cinematográficas que tiveram por base , história em quadrinhos, contos e lendas populares, personagens reais, crimes reais, músicas e programas de televisão e rádio. Citando alguns exemplos: “Moleque Tião” dirigido por José Carlos Burle foi baseado em reportagens; “Angelitos” dirigido por Humberto Santana partiu de uma HQ; “Mandacaru vermelho” dirigido por Nelson Pereira dos Santos nasceu de uma lenda popular; “Carlota Joaquina, princesa do Brazil” de Carla Camurati retrata um personagem histórico real; “O crime da mala” dirigido por Antônio Tibiriçá retrata um crime real; “Fuscão preto” de Jeremias Moreira Filho foi elaborado a partir de uma música homônima; “Marcado para o perigo” dirigido por Ary Fernandes articula-se a partir de um programa de TV e “As taradas atacam” de 1978 dirigido por Carlo Mossy foi construído a partir de um programa de rádio.

Gabriel Garcia Márquez uma vez disse que o Brasil é o país da música, do futebol e do cinema. A capacidade do cinema brasileiro de dialogar, de reportar-se, aos mais diversos aspectos da cultura brasileira parece indiciar sua capacidade de ser, tal qual o e nossa música e nosso futebol, um ponto de reconhecimento e de convergência da cultura nacional.
 
 



Postado por Danielle Cássia

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